Pedro
“Estás perdido ou incompleto?”, pergunto a mim mesmo enquanto me vejo ao espelho. Pergunto e respondo. “Estou perdido sim e incompleto estarei o resto da minha vida”. Rejeito o espelho, por não ter a certeza se sou eu quem está ali reflectido. Desço as escadas enquanto aperto alguns botões da minha camisa. A minha mãe espera-me ansiosa. Este já é o estado natural dela.
Entro numa sala pequena. Disseram-me que entrasse e me sentasse numa das cadeiras dispostas
“Olá. Sou o Pedro, tenho 20 anos e já tentei o suicídio duas vezes.”
Raquel
Não aceitei o convite da minha tia para ir morar para casa dela. Se me aguentei sozinha até agora, posso muito bem aguentar mais uns meses. Ainda por cima agora que a minha vida parece estar a equilibrar-se. É verdade que sofri bastante nas últimas semanas mas também é verdade que a morte do meu pai veio acalmar as dúvidas e inquietações que eu tinha dentro de mim. De certa forma é como se sentisse que se fez justiça, mesmo que a morte seja a coisa mais injusta de que me lembro agora.
Os jornais de hoje anunciam que o filho do primeiro-ministro sofre de uma doença psíquica grave. O Daniel. Agora lembro-me dele. Foi em tempos paciente do meu pai. Aquele a quem ele chamava “geniozinho”. Não consigo deixar de pensar que talvez a única doença do Daniel seja não querer pertencer ao mundo onde o obrigam a viver.
Ricardo
Sei os teus desejos de cor. Tu queres-me. Tu queres-me.
Estes pensamentos repetem-se na minha mente enquanto o beijo. O rádio toca uma música latina, do género reggaeton. Não é uma batida que aprecie muito, mas o ritmo impulsiona os meus sentidos. Sinto o corpo dele contra o meu, a mão dele a entrar-me pelas calças. “Papi dame lo que quiero...”. O som explode na minha cabeça, nos meus sentidos. Eu dou-lhe tudo o que ele quer. Deixo-me levar, ser conduzido por este desconhecido. Só sei que se chama Jorge, que tem mais um ano que eu e que foi o Nuno quem nos apresentou hoje à noite. E cá estamos nós a ter o nosso primeiro encontro sexual.
Há duas horas atrás estávamos na discoteca a dançar e ele tentou beijar-me. Recusei e afastei-me dele. Mas ele insistiu. Veio atrás de mim a gritar que não conseguia resistir-me e que faria de tudo para ter sexo comigo. O corpo dele não me atrai, muito menos a sua cara, o seu estilo. Senti repulsa e afastei-me mais, mas ele não desistiu e continuou a dizer que faria de tudo para me levar para a sua cama. A minha primeira impressão foi de que ele estava louco, mas depois percebi que falava muito a sério. “Pago-te quinhentos euros para foderes comigo hoje...”.
A minha boca deve ter ficado aberta durante alguns segundos, não contive o choque de me sentir bem ao ouvir aquelas palavras. Quinhentos euros por sexo. O acordo foi de imediato fechado.
Agora ele penetra-me e chama-me putinha ao ouvido. E eu gosto. E eu deliro. E eu estou fora de mim.
Daniel
Já não está ninguém
Há alturas da minha vida que parecem ter sido apagadas da minha memória, como se eu não as quisesse mais lembrar. Mas também há outras que parecem ter ficado para sempre marcadas. Os últimos meses não serão de certeza esquecidos, pois farei sempre muita força para me lembrar deles. Há uma força que me impele a aprender com os erros cometidos. A minha psicóloga hoje frisou isso. Foi o dia mais desconfortável naquele gabinete de consultas, mas, apesar de tudo, o que mais esperança me trouxe. A psicóloga suspeita de que eu possa estar a sofrer de doença bipolar. Explicou-me o que é e o risco que tomou ao contar-me assim tão frontalmente. Depois disse-me que não é o fim do mundo e que há medicação para controlar as minhas súbitas “alterações de humor”. Riu-se um bocadinho e tentou fazer-me ver que não estou psicótico nem psicopata. Eu fiquei céptico, como que a olhar de longe. E então senti aquela esperança a nascer dentro de mim, mas nem sei bem porquê.
Acabei por abandonar a clínica com um sorriso nos lábios. A cidade esperava-me, cheia de vida. Eu estou cheio de vida, pronto para recomeçar a viver a sério. Hoje vou levar a minha mãe ao cinema. Amanhã vou visitar o meu amor ao cemitério. Depois de amanhã vou reinscrever-me nas aulas de dança. No fundo o que espero de mim é força para continuar. Não há mais espaço para tentativas de suicídio na minha vida. Pelo menos por agora. Eu sei perfeitamente que nada é definitivo. Aprendi isso nos últimos tempos e agora só penso que se não morri foi porque tenho algo a fazer neste mundo, quanto mais não seja dar felicidade a alguém. Hoje à noite ainda vou voltar ao grupo de auto-ajuda, na esperança de contar mais um episódio da minha vida, na esperança de ouvir contar algo muito maior que os meus problemas, algo que me enriqueça a alma, que me faça acreditar que existo, que posso sentir o prazer das coisas mais simples, que estou aqui para viver, que não enlouqueci.
Passo agora por uma das lojas de roupa de que a Joana mais gostava. Costumávamos vir aqui aos fins-de-semana. Hoje a montra exibe uns vestidos de cores garridas, daqueles que o meu amor não hesitaria em comprar. É mais uma das pequenas coisas que não vai mais voltar a acontecer na minha vida, uma simples tarde de compras ao lado do meu amor. E eu, por mais comprimidos que tome, por mais música que dance, toda a vida sofrerei por isso.
Raquel
O meu blog está quase pronto, só falta mesmo escolher um título e começar a escrever o primeiro texto. As minhas confissões de puta irão trazer um novo fôlego a um mundo que está demasiado pálido, demasiado apático para perceber o que se passa debaixo do nariz de cada um. Não vou deixar o mundo da prostituição. Agora que me acostumei já não vale a pena lutar para não me habituar a isto. Hoje encontrei o Tiago na faculdade e ele fez questão de não me falar. Pouco me importa isso. Estou feliz porque consegui fazer a maioria das cadeiras e também porque vou ter direito a uma bolsa de estudo no próximo ano. Assim, com o dinheiro que ganho na noite já posso assegurar a minha vida numa casa melhor que esta espelunca imunda. Aqui na zona há apartamentos muito baratos e o melhor de tudo é que agora nas férias vou poder trabalhar a dobrar, o que significa que o meu dinheiro vai começar a fazer-se ver finalmente. Para além disso, a táctica de enviar o meu contacto para o jornal também já deu resultados. Escolhi um nome falso. Verónica. Arranjei outro número de telemóvel e escrevi “Verónica. 22 anos. Muita experiência. Sexo por prazer. Em qualquer sítio, a qualquer hora”. Surpreendentemente, o primeiro telefonema que tive foi de uma mulher. Não recusei a proposta, visto que vai pagar mesmo muito bem. Até vou ser levada para um hotel, por isso nada tenho a temer. Basta-me pensar que vai ser a minha primeira experiência com uma lésbica e que ela vai ter que me ensinar alguns truques no que diz respeito ao sexo entre duas mulheres. Tenho a certeza de que no futuro vão aparecer muitos mais serviços deste tipo... e eu ainda não estou na condição de os negar.
Ricardo
O Nuno não pára de me gritar ao ouvido que eu me prostituí. Talvez ele tenha razão, mas eu quero lá saber disso. O que me interessa é que ganhei quinhentos euros sem fazer o mínimo esforço. Ou melhor, apenas tive que aguentar as ejaculações tardias daquele estafermo que é o Jorge. Mas até nisso tive prazer. O Jorge é um menino rico, beto e chato mas pagou bem por aquela noite de sexo e isso foi o único motivo que me levou a estar com ele. Tenho a consciência tranquila e a certeza de que não o vou repetir.
Mas o Nuno insisti em repetir que eu sou uma puta e ri-se disso. Os amigos dele também estão a achar imensa piada. Confesso que já me está a irritar, por isso afasto-me e procuro outra mesa para tomar a minha bebida descansado. Estamos num bar gay, sitio que frequento agora com muita regularidade. O meu telemóvel vibra. É o meu pai a pedir-me para não ir para casa muito tarde e a perguntar se está tudo bem. Ele sabe onde estou, pois preferimos optar pela sinceridade mútua e por tentar evitar conflitos por causa da minha sexualidade, homossexualidade. A minha mãe também acabou por me ajudar, nem podia ter sido de outra de forma, depois de terem visto o que sofri na escola. O que interessa é que agora estou bem e feliz por eles confiarem
Aqui deste cantinho consigo ver tudo o que se passa à minha volta. Há umas bixinhas que riem alto junto ao balcão, comentam os rapazes que passam. Há um senhor mais velho que parece observar tudo com muita atenção enquanto troca carinhos com um rapaz mais jovem. Há um rapaz que se dirige na minha direcção. É muito alto, de corpo atlético e parece sorrir timidamente para mim. Não percebo a ideia dele. Fica de pé junto à minha mesa e parece relutante em falar. “Olá”, digo. “Olá. Desculpa a parvoíce”, começa ele, “mas gostava imenso de te conhecer”. Não sei bem o que dizer, mas talvez aprecie a sinceridade. Ele continua a falar, diz que tem-me visto por aqui e que sente uma enorme vontade de me conhecer. Perante uma declaração destas, o mínimo que posso fazer é pedir-lhe para se sentar e tomar uma bebida comigo. E é isso que faço. O rapaz até é giro e isto pode ser o começo de uma bela amizade ou até de algo mais. Pelo menos não é mais um daqueles “conhecimentos” das salas de chat virtuais. É verdade, a vida dá muitas voltas. E eu mais uma vez estou pronto a entrar no carrossel.
Daniel
Culpado? Vazio? Sim... Sinto-me assim. A luz vermelha da câmara pisca, indicando-me que já está a gravar. As minhas lágrimas salgadas dilaceram-me a alma, rasgam o meu ser antes intacto. Não há certezas quando levo à boca uma mão cheia de comprimidos roubados à minha mãe. Custa a engolir, mas o absinto ajuda-me a empurrar esta dose. Não ajuda nada. Sabe mal, cheira mal, queima-me a garganta, o estômago. Num minuto estou a sentir tudo isto e no outro já não sinto nada, mas os meus olhos permanecem abertos. Contemplo o tecto vazio do meu quarto, sinto a alucinação, sensação de leveza, de euforia desmaiada, de vazio. Os meus olhos fecham-se por fim. E eu nada sou agora. Apenas um fraco inútil à espera de ser encontrado já sem vida. Consigo ouvir ainda alguns sons do meu quarto e um leve sibilar do vento na minha janela. A câmara emite três “bip”, para me avisar que a bateria se foi abaixo. Deixou de me gravar, deixou-me. Ouço a fita da cassete parar de girar. A partir daqui o filme já não existe mais. E eu também não.