quinta-feira, 21 de junho de 2007

CAPÍTULO X (último)

Pedro

“Estás perdido ou incompleto?”, pergunto a mim mesmo enquanto me vejo ao espelho. Pergunto e respondo. “Estou perdido sim e incompleto estarei o resto da minha vida”. Rejeito o espelho, por não ter a certeza se sou eu quem está ali reflectido. Desço as escadas enquanto aperto alguns botões da minha camisa. A minha mãe espera-me ansiosa. Este já é o estado natural dela.

Entro numa sala pequena. Disseram-me que entrasse e me sentasse numa das cadeiras dispostas em círculo. Por mim escolhia a mais escondida, mas não há de facto nenhuma mais escondida e também já só há dois lugares vagos. Sento-me e tenho a sensação de que ninguém deu pela minha presença aqui. Uma rapariga, mais velha que eu, está a contar uma história que se passou com ela. Quando ela acaba de falar os das outras cadeiras batem palmas. Olham agora para mim, como se eu já devesse estar a falar com eles. Sinto um impulso que vem de dentro. Falo.

“Olá. Sou o Pedro, tenho 20 anos e já tentei o suicídio duas vezes.”


Raquel
Não aceitei o convite da minha tia para ir morar para casa dela. Se me aguentei sozinha até agora, posso muito bem aguentar mais uns meses. Ainda por cima agora que a minha vida parece estar a equilibrar-se. É verdade que sofri bastante nas últimas semanas mas também é verdade que a morte do meu pai veio acalmar as dúvidas e inquietações que eu tinha dentro de mim. De certa forma é como se sentisse que se fez justiça, mesmo que a morte seja a coisa mais injusta de que me lembro agora.

Os jornais de hoje anunciam que o filho do primeiro-ministro sofre de uma doença psíquica grave. O Daniel. Agora lembro-me dele. Foi em tempos paciente do meu pai. Aquele a quem ele chamava “geniozinho”. Não consigo deixar de pensar que talvez a única doença do Daniel seja não querer pertencer ao mundo onde o obrigam a viver.


Ricardo
Sei os teus desejos de cor. Tu queres-me. Tu queres-me.

Estes pensamentos repetem-se na minha mente enquanto o beijo. O rádio toca uma música latina, do género reggaeton. Não é uma batida que aprecie muito, mas o ritmo impulsiona os meus sentidos. Sinto o corpo dele contra o meu, a mão dele a entrar-me pelas calças. “Papi dame lo que quiero...”. O som explode na minha cabeça, nos meus sentidos. Eu dou-lhe tudo o que ele quer. Deixo-me levar, ser conduzido por este desconhecido. Só sei que se chama Jorge, que tem mais um ano que eu e que foi o Nuno quem nos apresentou hoje à noite. E cá estamos nós a ter o nosso primeiro encontro sexual.

Há duas horas atrás estávamos na discoteca a dançar e ele tentou beijar-me. Recusei e afastei-me dele. Mas ele insistiu. Veio atrás de mim a gritar que não conseguia resistir-me e que faria de tudo para ter sexo comigo. O corpo dele não me atrai, muito menos a sua cara, o seu estilo. Senti repulsa e afastei-me mais, mas ele não desistiu e continuou a dizer que faria de tudo para me levar para a sua cama. A minha primeira impressão foi de que ele estava louco, mas depois percebi que falava muito a sério. “Pago-te quinhentos euros para foderes comigo hoje...”.

A minha boca deve ter ficado aberta durante alguns segundos, não contive o choque de me sentir bem ao ouvir aquelas palavras. Quinhentos euros por sexo. O acordo foi de imediato fechado.

Agora ele penetra-me e chama-me putinha ao ouvido. E eu gosto. E eu deliro. E eu estou fora de mim.


Daniel

Já não está ninguém em casa. Estou finalmente sozinho. As minhas verdades podem finalmente revelar-se. Já parti o espelho do meu quarto. Já liguei a câmara de filmar. Já me certifiquei de que não vou aparecer desfocado na imagem. A minha cama está vazia, desfeita. Deito-me nela e espero ganhar coragem para o que quero fazer. Suspiro. Penso na minha mãe. Fecho os olhos. Penso em como ninguém gosta de mim, em como afasto as pessoas de mim, em como tenho vindo a somar erros atrás de erros. Por fim, penso em como isto vai acabar. E eu que sempre achei que um suicídio era uma coisa tão fútil e banal, tão “na moda”...

Pedro

Há alturas da minha vida que parecem ter sido apagadas da minha memória, como se eu não as quisesse mais lembrar. Mas também há outras que parecem ter ficado para sempre marcadas. Os últimos meses não serão de certeza esquecidos, pois farei sempre muita força para me lembrar deles. Há uma força que me impele a aprender com os erros cometidos. A minha psicóloga hoje frisou isso. Foi o dia mais desconfortável naquele gabinete de consultas, mas, apesar de tudo, o que mais esperança me trouxe. A psicóloga suspeita de que eu possa estar a sofrer de doença bipolar. Explicou-me o que é e o risco que tomou ao contar-me assim tão frontalmente. Depois disse-me que não é o fim do mundo e que há medicação para controlar as minhas súbitas “alterações de humor”. Riu-se um bocadinho e tentou fazer-me ver que não estou psicótico nem psicopata. Eu fiquei céptico, como que a olhar de longe. E então senti aquela esperança a nascer dentro de mim, mas nem sei bem porquê.


Acabei por abandonar a clínica com um sorriso nos lábios. A cidade esperava-me, cheia de vida. Eu estou cheio de vida, pronto para recomeçar a viver a sério. Hoje vou levar a minha mãe ao cinema. Amanhã vou visitar o meu amor ao cemitério. Depois de amanhã vou reinscrever-me nas aulas de dança. No fundo o que espero de mim é força para continuar. Não há mais espaço para tentativas de suicídio na minha vida. Pelo menos por agora. Eu sei perfeitamente que nada é definitivo. Aprendi isso nos últimos tempos e agora só penso que se não morri foi porque tenho algo a fazer neste mundo, quanto mais não seja dar felicidade a alguém. Hoje à noite ainda vou voltar ao grupo de auto-ajuda, na esperança de contar mais um episódio da minha vida, na esperança de ouvir contar algo muito maior que os meus problemas, algo que me enriqueça a alma, que me faça acreditar que existo, que posso sentir o prazer das coisas mais simples, que estou aqui para viver, que não enlouqueci.

Passo agora por uma das lojas de roupa de que a Joana mais gostava. Costumávamos vir aqui aos fins-de-semana. Hoje a montra exibe uns vestidos de cores garridas, daqueles que o meu amor não hesitaria em comprar. É mais uma das pequenas coisas que não vai mais voltar a acontecer na minha vida, uma simples tarde de compras ao lado do meu amor. E eu, por mais comprimidos que tome, por mais música que dance, toda a vida sofrerei por isso.


Raquel
O meu blog está quase pronto, só falta mesmo escolher um título e começar a escrever o primeiro texto. As minhas confissões de puta irão trazer um novo fôlego a um mundo que está demasiado pálido, demasiado apático para perceber o que se passa debaixo do nariz de cada um. Não vou deixar o mundo da prostituição. Agora que me acostumei já não vale a pena lutar para não me habituar a isto. Hoje encontrei o Tiago na faculdade e ele fez questão de não me falar. Pouco me importa isso. Estou feliz porque consegui fazer a maioria das cadeiras e também porque vou ter direito a uma bolsa de estudo no próximo ano. Assim, com o dinheiro que ganho na noite já posso assegurar a minha vida numa casa melhor que esta espelunca imunda. Aqui na zona há apartamentos muito baratos e o melhor de tudo é que agora nas férias vou poder trabalhar a dobrar, o que significa que o meu dinheiro vai começar a fazer-se ver finalmente. Para além disso, a táctica de enviar o meu contacto para o jornal também já deu resultados. Escolhi um nome falso. Verónica. Arranjei outro número de telemóvel e escrevi “Verónica. 22 anos. Muita experiência. Sexo por prazer. Em qualquer sítio, a qualquer hora”. Surpreendentemente, o primeiro telefonema que tive foi de uma mulher. Não recusei a proposta, visto que vai pagar mesmo muito bem. Até vou ser levada para um hotel, por isso nada tenho a temer. Basta-me pensar que vai ser a minha primeira experiência com uma lésbica e que ela vai ter que me ensinar alguns truques no que diz respeito ao sexo entre duas mulheres. Tenho a certeza de que no futuro vão aparecer muitos mais serviços deste tipo... e eu ainda não estou na condição de os negar.



Ricardo
O Nuno não pára de me gritar ao ouvido que eu me prostituí. Talvez ele tenha razão, mas eu quero lá saber disso. O que me interessa é que ganhei quinhentos euros sem fazer o mínimo esforço. Ou melhor, apenas tive que aguentar as ejaculações tardias daquele estafermo que é o Jorge. Mas até nisso tive prazer. O Jorge é um menino rico, beto e chato mas pagou bem por aquela noite de sexo e isso foi o único motivo que me levou a estar com ele. Tenho a consciência tranquila e a certeza de que não o vou repetir.

Mas o Nuno insisti em repetir que eu sou uma puta e ri-se disso. Os amigos dele também estão a achar imensa piada. Confesso que já me está a irritar, por isso afasto-me e procuro outra mesa para tomar a minha bebida descansado. Estamos num bar gay, sitio que frequento agora com muita regularidade. O meu telemóvel vibra. É o meu pai a pedir-me para não ir para casa muito tarde e a perguntar se está tudo bem. Ele sabe onde estou, pois preferimos optar pela sinceridade mútua e por tentar evitar conflitos por causa da minha sexualidade, homossexualidade. A minha mãe também acabou por me ajudar, nem podia ter sido de outra de forma, depois de terem visto o que sofri na escola. O que interessa é que agora estou bem e feliz por eles confiarem em mim. Como nada é perfeito, tive que deixar o futebol porque não aguentava as piadas dos meus colegas de equipa. Mas até sei que isso vai ser apenas temporário, pois um jogador como eu não é para ser desperdiçado. Estou a rir-me por dentro, escolho uma mesa escondida a um canto e sento-me enquanto o Nuno gesticula qualquer coisa. Ignoro-o.

Aqui deste cantinho consigo ver tudo o que se passa à minha volta. Há umas bixinhas que riem alto junto ao balcão, comentam os rapazes que passam. Há um senhor mais velho que parece observar tudo com muita atenção enquanto troca carinhos com um rapaz mais jovem. Há um rapaz que se dirige na minha direcção. É muito alto, de corpo atlético e parece sorrir timidamente para mim. Não percebo a ideia dele. Fica de pé junto à minha mesa e parece relutante em falar. “Olá”, digo. “Olá. Desculpa a parvoíce”, começa ele, “mas gostava imenso de te conhecer”. Não sei bem o que dizer, mas talvez aprecie a sinceridade. Ele continua a falar, diz que tem-me visto por aqui e que sente uma enorme vontade de me conhecer. Perante uma declaração destas, o mínimo que posso fazer é pedir-lhe para se sentar e tomar uma bebida comigo. E é isso que faço. O rapaz até é giro e isto pode ser o começo de uma bela amizade ou até de algo mais. Pelo menos não é mais um daqueles “conhecimentos” das salas de chat virtuais. É verdade, a vida dá muitas voltas. E eu mais uma vez estou pronto a entrar no carrossel.



Daniel
Culpado? Vazio? Sim... Sinto-me assim. A luz vermelha da câmara pisca, indicando-me que já está a gravar. As minhas lágrimas salgadas dilaceram-me a alma, rasgam o meu ser antes intacto. Não há certezas quando levo à boca uma mão cheia de comprimidos roubados à minha mãe. Custa a engolir, mas o absinto ajuda-me a empurrar esta dose. Não ajuda nada. Sabe mal, cheira mal, queima-me a garganta, o estômago. Num minuto estou a sentir tudo isto e no outro já não sinto nada, mas os meus olhos permanecem abertos. Contemplo o tecto vazio do meu quarto, sinto a alucinação, sensação de leveza, de euforia desmaiada, de vazio. Os meus olhos fecham-se por fim. E eu nada sou agora. Apenas um fraco inútil à espera de ser encontrado já sem vida. Consigo ouvir ainda alguns sons do meu quarto e um leve sibilar do vento na minha janela. A câmara emite três “bip”, para me avisar que a bateria se foi abaixo. Deixou de me gravar, deixou-me. Ouço a fita da cassete parar de girar. A partir daqui o filme já não existe mais. E eu também não.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

testemunho número 2

Mais uma vez, não consigo publicar um capítulo no seu tempo devido. Peço desde já desculpa por isso, mas há de facto alguns problemas pessoais que têm condicionado a minha escrita e não quero de maneira nenhuma que isso influencie negativamente o final desta história. Já comecei a escrever o último capítulo e tenho que confessar que se torna muito difícil despedir-me destes meus quatro fantásticos. Procuro um final justo para o Pedro, Raquel, Ricardo e Daniel. Para um deles o final é certo, trágico mas belo. Para os outros é difícil encontrar um rumo, apesar de saber bem o que lhes quero dar.

Ao longo destas semanas fui desenvolvendo uma história que me agarrou desde o início e que me deu imenso prazer contar. O melhor de tudo foi receber o feedback dos meus leitores, ouvir as suas opiniões, as críticas construtivas, as queixas...

Com isto tudo acabei por me afeiçoar aos meus quatro meninos. Vivi com o Pedro a fraqueza do suicídio. Sofri com a Raquel a perda de um ente querido, a entrega do sexo puro e duro. Confrontei-me com o Ricardo nas suas deambulações pelo “mundo gay”. Enfrentei o Daniel com a sua “sociopatia”, com a sua genialidade, a sua doença.

Todos os dias, quando ia dormir, ficava a pensar neles, no que lhes havia de dar. Pensava que o mais justo para o Pedro seria perder a namorada que traiu, que a Raquel merecia encontrar força em si própria, que o Ricardo precisava de bater no fundo do poço para depois voltar a subir até à luz, que o Daniel sofreria pelas incongruências dos seus actos. Cheguei a chorar enquanto escrevia algumas partes da história, sobretudo no capítulo VII. Mas e agora? É certo que o final não será definitivo. Tudo o que eu escrever permanecerá em aberto, tal como a vida de todos nós. Cada um poderá depois imaginar a continuação da vida deles, mas tudo o que eu escrever condicionará os limites para essa imaginação. Com isso tudo, só espero não desiludir em nada.

Quem me conhece diz que pus muito de mim nesta história. É mentira, eu não pus muito de mim, pus tudo.

Ripper

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Capítulo IX

O teu corpo já não é corpo. A tua alma já não é alma. Estás vazio, pois completa-se a tua ascensão. Despede-te deles. António, já percebeste o porquê da existência do Pedro, da Raquel, do Ricardo e do Daniel. Daqui para a frente não estarei mais contigo. Sozinho, vaguearás pelos meandros da existência, do espaço, do tempo. Onde estás? Para onde irás? Como? Quando? Nada tem resposta aqui, porque tu também não podes fazer perguntas. A tua ascensão completou-se, és livre. Vai António. Liberta-te.


Pedro
Eu e a minha mãe. Um jantar calmo, sem grandes conversas. A minha casa. Sim, a minha casa. Já não é a psiquiatria. Já não é aquele medo de poder ter um problema. É a minha casa, meu refúgio, minha serenidade. É um jantar triste. A minha mãe evita falar para mim e nem sequer faz um esforço para me olhar de frente. Respiro fundo, como se quisesse chamar a atenção dela. Não funciona. Levanto-me e caminho até à janela que dá para uma rua pouco movimentada. A noite acalma-me, penso na minha vida.

A Joana deixou-me de vez. Sei que vou ter que viver com isso até ao fim dos meus dias. De qualquer forma a minha vida já está completamente destruída. Mas sobro eu, imortal vencedor deste jogo a que me propus. Podia tomar mais uma valente dose de comprimidos hoje, mas não o vou fazer. Não vale a pena. E porquê? Porque não quero morrer. Não, não quero. O que quero, o que mais desejo, é ficar vivo a sofrer por aqueles que feri. A Joana, meu amor, deixou-me de vez. A Joana deixou-me de vez, meu amor. Mas porque o fizeste amor? Porque o fizeste?

A Joana morreu. Uma amiga encontrou-a já sem vida no quarto. À sua volta caixas de comprimidos vazias, uma garrafa de whisky aberta, a morte. Amor, quem és tu? Que conseguiste o que eu não consegui... Porquê?

Agora já não te tenho, é uma certeza. E nem sequer te acompanhei na tua última viagem. Não te fui levar àquele cemitério. Não fui em pessoa, mas fui em sonho, em alucinação.

Eu não estou a enlouquecer, mas sinto-me feliz. Sinto. Morreste, não és minhas mas também não serás de mais ninguém. Lembro-me de me chamares obsessivo. E eu era. E eu sou. E eu serei, sempre por ti. Tu nunca me amaste, Joana. Não o dizias, porque não o sentias. E quando o dizias, era porque mentias.

E as minhas tentativas de suicídio acabaram por te matar.

Descansa em paz.

Já quase me esquecia de pensar isto, mas hoje fiz um exame profundo com a minha psicóloga nova. Penso que era um teste de personalidade. Para a semana vamos saber se sou ou não um psicopata. Tu já sabes a resposta, amor...




Raquel
Hoje apareceu mais uma da minha idade. Veio sozinha, como eu, chegou e fez muita força para não começar a chorar à minha frente. Contei-lhe um pouco da minha história à medida que ela fazia perguntas. No fundo tentei mostrar-lhe que ser uma puta também tem as suas vantagens. Mas não a convenci. Vi como tremia quando apareceu o primeiro cliente. Vi como vinha abatida quando a sessão acabou. Vi como eu me espelhava nela.

Eu nunca vou sair deste mundo. Sinto isso a cada euro que ganho. E já pouco me importo com o que as pessoas possam pensar.

Hoje estou mais despreocupada, já não tenho tantas contas para pagar, por isso relaxo enquanto me encosto a esta parede fria. Vem um miúdo a descer a rua, de olhos postos no chão, como se a vergonha o impedisse de olhar o mundo de frente. Sinto uma empatia estranha com ele. Sorrio quando ele passa, mas ele nem olha para mim. Pára. Simplesmente pára à minha frente e diz que quer sexo. Surpreendeu-me.



Ricardo
Aceitei o Nuno de volta, como amigo. Mas quase que sinto que já me arrependi. Eu e o Nuno somos muito diferentes. Hoje passamos o dia no shopping com mais dois amigos dele, que tentaram à força tornarem-se meus amigos. Mas não deu. Odiei esta tarde com eles, pois nunca vi coisas mais bichas, mais histéricas, sempre aos gritinhos quando passava um rapaz mais giro. Odeio isto. Odeio este mundo. Não quero ser assim, quero ser genuíno, ser eu, ser gay mas ser eu. Mas será que quero ser gay? Será que me sinto preparado para aceitar esta vida?

É na procura de respostas a essas perguntas que desço agora esta rua. Como diria um qualquer amigo meu, “vou às putas”. É o meu derradeiro teste. Desço a rua de olhos postos no chão, sinto vergonha de enfrentar o mundo de frente. Espreito pelo canto do olho e vejo uma delas encostada a uma parede. Abrando o passo e paro junto dele, digo que quero sexo. Ela diz-me preços. Aceito, até é menos do que eu esperava. Atravessamos a rua juntos e entramos numa pensão barata. Num quarto que cheira a mofo. Ela deita-se na cama nua. Dispo-me depressa. Ela quase me obriga a ser mais rápido. Ela é nova e isso faz-me confusão, só deve ter mais um ou dois anos que eu. Começa a brincar comigo, tenta excitar-me, com as mãos, com a boca, com o corpo... mas não dá. Não consigo. Não sinto prazer. As lágrimas correm-me pela face, umas de alegria, outras de tristeza. Olho-a finalmente nos olhos e exclamo “Eu sou gay!”. Como se isso fosse a melhor coisa do mundo. Ela não sabe o que fazer. Fica atrapalhada, mas então eu pego-lhe nas mãos e digo para parar, enquanto começo a contar a minha razão de estar ali.

Nesta noite fomos os melhores amigos. Secretamente afastados do mundo que corrompe as nossas almas. Ela é a Raquel, eu sou o Ricardo. Amanhã não somos nada. Apenas dois seres a vaguear por estas ruas apinhadas de gente euforicamente vidradas nas suas estúpidas vidinhas.



Daniel
Arruinei a minha vida por completo. Hoje faço capa em muitos jornais, tornei-me mediático quando não o queria ser. Mas devia ter pensado nisso antes de começar a atacar com insultos os jornalistas que foram a minha casa fazer aquela reportagem estúpida. Eu quis assim. Se bem me lembro, tomei muitos cafés para aumentar o nível de cafeína no meu corpo e fazer assim disparar os meus instintos. Não funcionou como eu esperava. Senti-me mal, incapaz de quase falar, mas acabei por partir uma câmara do jornalista que insistia em filmar-me enquanto eu vomitava no chão da sala. O meu pai afastou-se, incrédulo, sem saber o que fazer. A minha mãe apoiou-me, como quase sempre fez ao longo da minha vida. Não fui tão violento como esperava, mas agora sou chamado de louco por esses jornais fora. Tablóides irritantes... eu não sou louco. Não sou, pois não?

Talvez seja. Talvez deva pensar nos espelhos que já parti por me considerar doente de dupla personalidade. Talvez deva pensar nas pessoas que já feri fisicamente, emocionalmente e por aí fora... Talvez agora eu perceba que a minha vida não anda para a frente, limita-se a estar estagnada num ponto em que eu não me consigo definir, em que não consigo tomar decisões acertadas nem afastar-me do espectro de sentir que dentro de mim há uma pessoa melhor, mais dócil, mais carente, menos fria, menos arrogante, menos violenta.

Eu sou o Daniel e o outro que está dentro de mim quem é? Tenho que lhe arranjar um nome. Pelo menos para que possa morrer seguro de que o meu outro eu também teve um nome.

Pedro
A minha mãe quer inscrever-me num grupo de auto-ajuda para pessoas que já tentaram o suicídio. A ideia não me parece completamente disparatada, mas por outro lado não sei se estou preparado para enfrentar isso.

O Pedro deve inscrever-se no grupo?
Sim
Não
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Raquel
A minha vida é cada vez mais uma caixinha de surpresas. Hoje a minha tia ligou-me para me oferecer um quarto lá em casa. Não sei se quero ir viver naquele ninho de cobras. Mas a verdade é que teria melhores condições e nem ficava assim tão longe da universidade, ainda por cima agora que as aulas estão quase a acabar. A minha alternativa era procurar outra casa por aqui e talvez arranje dinheiro para isso. Não sei o que fazer e a vida lá fora continua.


A Raquel deve aceitar a oferta da tia?
Sim
Não
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segunda-feira, 4 de junho de 2007

CAPÍTULO VIII

Ainda pensas que vale a pena continuar a observá-los? O teu tempo está a acabar, António. Vamos aproveitá-lo ao máximo, como tu certamente não farias se ainda vivesses.


Pedro
Posso estar com uma lesão cerebral. Posso estar com uma lesão no fígado. Posso estar mesmo a morrer desta vez. Tudo é incerto. Ou melhor, há uma coisa que é certa: abusei no uso dos comprimidos e isso pode ter-me destruído por dentro, fisicamente. Que faço agora? Nada. Limito-me a esperar pelo resultado dos exames que fiz hoje de manhã. E mais, faço força para me convencer de que a minha queda no duche foi apenas uma descida de tensão. Também pode ter sido, mas aqueles instantes em que me olhei ao espelho foram muito estranhos, como se a resposta estivesse ali.

Imagens mínimas, pequenas partes do meu ser. A luz do candeeiro. Eu. Tu, Joana. Vem comigo. Não, não posso pensar mais nela. Mãe. Estás comigo? Não, não estás. Que me espera. Quero sair daqui pai. A psiquiatria é um lugar horrível, masmorra dos meus sentimentos. Quero ser livre, sair da gaiola onde me prenderam. Sou um pássaro que aprendeu a voar mas que alguém prendeu. É injusto. A luz do candeeiro parece ofuscar-me, como se aumentasse. O comprimido para me pôr a dormir já está a fazer efeito. As alucinações começam, como a projecção dos meus problemas numa enorme tela de cinema. Vejo um funeral, mas não é o do meu pai. Muitas pessoas choram, muitos amigos me acompanham. Eu estou no centro e grito, como se não dominasse uma fúria doentia. Lembro-me disto? Ou será só a minha imaginação? Como num filme, a câmara aproxima-se e mostra-me a urna. Não. Não é verdade. Ela não morreu, ainda a semana passada esteve comigo. A câmara aproxima-se mais e mostra-me de perto o rosto daquele corpo morto, como se eu me recusasse a acreditar. Não quero adormecer agora. O comprimido é forte demais, não resisto. Fecho os olhos. O funeral continua. Sonho? Memória? Alucinação? A câmara foca aquele rosto de anjo. Faz-me chorar, a duvidar.

Joana?



Raquel
Dinheiro. Dinheiro. É o que move o meu corpo, que se eleva e desce repetidamente sobre outro corpo suado. Não há prazer que se infiltre aqui, a não ser o dele. Mas isso não me importa. Dou conta daquela súbita falta de ar que precede o orgasmo dele, saio de cima do seu corpo bafiento, pego no dinheiro e saio do carro. Já é a terceira vez que este me procura e fazemo-lo sempre desta maneira: dentro do carro, na avenida mais movimentada da cidade. Ele gosta de se sentir observado enquanto me fode. Deve ser assim um típico trauma de infância que se reflecte agora num fetiche sexual completamente descabido. E cá estou eu para o satisfazer e compreender. A psicóloga prostituta.

Agora que penso nisso, dava um título bonito para uma daquelas histórias dramáticas que passam nos programas matutinos da televisão. Mas... a minha história está longe de ser dramática.


Ricardo
A minha respiração acelera. Tento conter os gemidos. Ouço passos à minha volta. A minha mão esquerda apoia-se na parede à minha frente. Suada, quase escorrega. A mão direita trabalha lá em baixo. Estou no intervalo das aulas. Quase. Acelero os meus movimentos, sinto a excitação a possuir-me. Uma contracção dos músculos e expludo. Por momentos esqueço-me que estou numa casa-de-banho pública, num compartimento demasiado apertado e sujo. Espero que ninguém tenha ouvido os meus gemidos. Aguento um bocado, até não ouvir barulho e depois saio para o corredor quase deserto.

Vou faltar à aula. E esta vai ser uma falta mais que justificada. Já estou a imaginar o diálogo: “Ricardo, porque faltaste?”, “Olhe professora, faltei à aula porque estou farto dos olhares discriminatórios e xenófobos da maior parte dos meus colegas de turma. Porque sou gay, entende?”

Se os olhares fossem o único problema eu até aguentava, mas levar com piadinhas a toda a hora não faz realmente parte dos meus planos para hoje. Nem para amanhã. Nem para depois. O mais reconfortante ainda foi descobrir que afinal o Daniel é muito mais amigo do que todos os outros. Nem sei se posso considerar amigo, talvez seja apenas mais um colega de batalha. Ele luta por uma causa e eu por outra, mas estamos ambos do mesmo lado da guerra. Talvez se ele viesse às aulas pudesse ser outro apoio para mim. Nem sei que anda ele agora a fazer, mas espero que esteja mais calmo e que venha depressa para a escola, caso contrário também eu terei que a abandonar.

Procuro o meu cantinho no jardim da escola. Nos meus primeiros anos era aí que me refugiava sempre que precisava de estar sozinho, como agora. Nunca me passou pela cabeça que pudesse precisar de o fazer outra vez. O meu telemóvel toca. É a minha mãe, por isso não atendo. Ontem ela ofendeu-me bastante, ao dizer que sente nojo de mim e que espera que a psicóloga resolva este meu problema. E só por causa disso lá vou eu amanhã para a psicóloga. Deve ser mais uma daquelas psicólogas fashion, por isso vou limitar-me a responder às questões que ela coloca a todos os pacientes, partindo do princípio que são todos iguais. A minha mãe vai adorar isso, tal como adora assistir à estúpida novela da noite. E eu vou passar por alguém que se quer tratar de uma doença, quando isto não é uma doença que se trate com terapias rebuscadas. A única terapia para isto é baseada nos prazeres da carne e apenas eu posso prová-lo. Vou procurar prazer no sexo feminino. A maneira mais fácil é procurar prostitutas, visto que nenhuma amiga minha está disposta a colaborar no meu sofrimento. Será fácil resolver isto. Vou, pago e depois é só experimentar se realmente isto funciona da mesma maneira. Ai, sou tão estúpido. Por que penso nisto? Que pensamentos são estes que tentam iludir-me, rasgar a minha lucidez? Eu gosto de rapazes, certo?


Há revolta dentro de mim. Muita revolta. Mas ao mesmo tempo sinto que tenho a alma vazia. Escondido aqui neste cantinho do jardim consigo observar tudo à minha volta, como se fosse invisível. Há um casal de namorados, heterossexuais, sentados num banco em frente à porta do bar da escola. Beijam-se vezes sem conta e demoradamente. Podem fazê-lo ali, à frente de toda a gente e ninguém lhes aponta o dedo. Prefiro não continuar a olhar. Observo o chão onde estou sentado. Não há nada, para além de relva seca. Será isto um reflexo do meu próprio eu? Serei eu apenas uma erva que se deixou secar? Não, não posso ser. Eu sou mais forte que isto tudo.
Levanto-me mas logo me arrependo de o ter feito. “Ainda bem que te vejo”, diz o Nuno que caminha agora na minha direcção. Não percebo o que faz ele aqui, se nem sequer é aluno desta escola. Fico imóvel, à espera das palavras dele. Tenho que reconhecer que a nossa história não foi nada exemplar. Primeiro comemo-nos logo no primeiro encontro, depois perdi a virgindade com ele e simplesmente isso nada significou para ele. A cena de pancada na discoteca não abonou nada a meu favor e acabei por desconfiar dele quando na verdade tinha sido o Daniel a contar ao meu pai sobre a minha orientação sexual. E agora aqui estamos. Observo os seus olhos, os seus movimentos. Tenho medo. Sim, medo dele. Atracção também, vontade de cair nos seus braços e de chorar até libertar todo este sofrimento. Ele começa a falar, “Ricardo, desculpa vir assim sem avisar. Só vim porque sei que estás a sofrer e queria ver isso com os meus próprios olhos”. Tento não acreditar que ele veio aqui só para me provocar. Respiro. Controlo-me. Respiro mais fundo. Ele continua, “Mas não penses que quero o teu mal, estou aqui para te ajudar amigo.” Agora é que faço mesmo força para não acreditar. Ele quer gozar comigo ou ajudar-me. Opção A ou opção B? Alguém pode escolher por mim? É impressionante como ainda acho piada à minha situação actual. O Nuno continua a falar, “Já vi que não estás muito crente em mim, mas acredita que só quero o teu bem. Também já passei por isso e tu sabes, porque te contei, mas não há nada como sentir na própria pele”.


O Ricardo deve aceitar o Nuno como amigo?
Sim
Não
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Daniel
É aquela sensação de quereres matar alguém. Passas por alguém na rua e sentes isso.

Não vale a pena gastar o meu tempo com este psiquiatra, ele não me entende e apenas se limita a dar-me calmantes, comprimidos reguladores de humor e outras drogas nada naturais. Estou proibido de beber café e tudo o que possa conter cafeína. Álcool nem pensar. Estou enfiado numa ditadura e não gosto minimamente disso. Mas todos à minha volta passam o dia a gritar que a cafeína e o álcool em excesso vão despertar os meus instintos mais violentos ou mesmo os instintos mais frágeis e que portanto não posso abusar nisso. Não gosto que gritem comigo, porque isso obriga-me a gritar mais alto.

Foi o que senti quando ameacei o Ricardo com aquela faca. Não é que não tenha gostado de o fazer, mas foi aquela sensação de querer matar alguém. Se bem me lembro, acabei por gostar dele. Mas porque não consigo senti-lo agora? Estou farto desta bipolaridade que me corrompe.

Hoje é um dia decisivo e nem sequer me importo com isso. Parece que a notícia do meu internamente acabou mesmo por chegar aos jornais e, como se esperava, o meu pai não gostou nada disso. O senhor primeiro-ministro tem a sua primeira mancha numa carreira política de quase vinte anos. Estou orgulhoso disso, mas nada contente por ter que receber hoje a televisão lá em casa. Agora temos que passar uma imagem de família feliz e para isso não há nada melhor do que chamar os intrometidos dos jornalistas.



Eles já estão à minha espera na sala, tal como o meu pai e a minha mãe. Eu já estou quase pronto, basta apenas acabar de beber o meu cafézinho. O trigésimo café desta tarde. Trinta cafés parece um abuso, mas talvez nem o seja. Bem, com tanta cafeína dentro de mim, uma coisa é certa: o espectáculo vai começar.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Capítulo VII

António, hoje vamos recordar alguns momentos do tempo em que ainda vivias, mesmo submerso em álcool e desespero.
Há um ano atrás tu estavas assim...


António
A minha filha desapareceu. Foi embora, de certeza que foi embora. Foi? Não sei. Nem esta garrafa de whisky me deu uma resposta, uma certeza. Não interessa. Sei que mais tarde ou mais cedo ela vai dar-me um sinal. O meu corpo está tão dormente, os meus braços quase presos a este sofá, as pernas imóveis, pesadas. O álcool adormece a minha dor, deixa-me relaxado e controla os meus instintos violentos. Segundo as normas, devia funcionar ao contrário mas eu sou mais forte.

O candeeiro aqui por cima de mim parece balançar vezes sem conta e às vezes pára, como se estivesse a brincar comigo. Lembro-me agora que hoje perdi mais um paciente. E desta vez perdi o meu géniozinho, o Daniel. Tenho pena dele, pois sei que aquela bipolaridade da sua doença ainda vai dar muito que falar. Tal como dá a mim. Não foi preciso dizerem-me que sofro disso, sempre o senti. Os meus olhos já se fecham, o álcool possui-me quase por completo e os sons da rua agitada fazem-me confusão enquanto ecoam na minha cabeça. Ah, o Daniel. Estava a pensar nele e nas semelhanças que temos. Ao estudá-lo era como se estivesse a estudar o meu próprio interior e ele, porque é inteligente demais, percebeu sempre isso.

Onde está a minha Raquel? Gostava que ela me visse agora. Talvez agora eu pudesse contar-lhe que quando abusei da mãe dela estava fora de mim, levado pelo álcool e pelos instintos da psicose de uma doença que se manifesta cinicamente. Não há marcas físicas para isto e qualquer desculpa que se dê parecerá sempre muito disparatada.

Os meus olhos tornam-se finalmente absolutamente pesados, é impossível abri-los agora, ainda que eu continue a sentir tudo à minha volta. Ainda tenho o cheiro moribundo da puta que me satisfez esta noite. O seu perfume barato e o cheiro a suor permanecem colados em mim e nas minhas coisas. E Aqui. Na minha casa. Aqui. Onde antes viveu uma família sob a harmonia falsa de uma peça de teatro, qual vida, despedaçada pelos instintos dos seus actores.



E agora António? Gostaste do que viste? Adorava que pudesses responder-me. Mas não podes fazê-lo, por isso vamos continuar a observar a vida dos nossos quatro magníficos.



Pedro
Como eu te amo Joana. Amo o teu ser, o teu corpo. Amo cada pedaço de ti. Cada sorriso, cada lágrima. Tu satisfazes-me completamente, dás-me o que eu nunca tive de outra pessoa. Os nossos corpos fundem-se em mil prazeres quando nos deitamos para ter sexo. Não é sexo, é amor puro. E eu não posso deixar-te fugir de mim, somos felizes. Não somos? Claro que sim. Também o pensas, embora não o digas.
Dormes agora como um anjo. Enquanto observo a tua respiração lenta sei que és minha e a certeza de que estávamos destinados não me abandona. É em cada gesto meu e teu que sei que nos amamos e que acima de tudo nos respeitamos. E é por isso que sei que nunca te vou trair. Essa é a certeza mais absoluta que eu tenho. Neste momento.

Acordo. Estou assustado. Estava a sonhar. A noite absorve-me e deixo-me cair novamente num sono inquieto.

À noite sucede o dia e a luz que insiste em não me iluminar. Onde está o meu amor? Que amo eu se não queria mais viver? O meu psiquiatra já não sabe mais que me perguntar. É óbvio que não tenho força suficiente para me agarrar à minha vida e ele já percebeu isso. Mas eu devia ter contado a verdade, devia ter dito que desta segunda vez não queria morrer. Será que não queria?
O tempo passa tão lentamente que sinto que estou aqui fechado há mais de uma semana, quando ainda só passaram dois dias. Dou por mim a chorar pelos cantos de cada vez que recordo imagens do meu pai. O mais estranho é sentir que só ele agora poderia perceber o meu sofrimento, pois a minha mãe e o meu amor abandonaram-me. Simplesmente deixaram de confiar em mim. Eu mereço isso. Mereço sofrer, sentir na carne o mal que fiz aos outros. E mereço provar que consigo sofrer.

Hora do banho, anuncia uma enfermeira quando passa pela minha cama. Levanto-me com uma fúria quase sobrenatural. O que é isto? Que se passa comigo? Sinto que não me controlo. Choro, mas uma parte de mim parece rir-se. Há uma perturbação dos meus sentidos, como se de repente deixasse de ver, como se a minha audição falhasse. Mesmo assim continuo a andar atrás daquela enfermeira que faz por me ignorar. Aqui estou eu. Agora sozinho, dispo as minhas roupas, ligo o chuveiro. Não estou bem. As coisas à minha volta parecem escapar aos meus movimentos, como se fugissem de mim. A água fria molha-me mas quase não o sinto. Há um espelho que me reflecte. Mas aquele reflectido não sou eu. O meu corpo desfalece, sinto-me cair no chão com força. Dói tanto.



Raquel
Conhecemo-nos naquela discoteca nessa noite e ele levou-me para sua casa. Já nem me lembro do nome dele, mas penso que era um homem importante. Um homem? Um rapaz, afinal só tinha mais quatro ou cinco anos que eu. Nem liguei muito aos pormenores da sua vida, pois o que ele me ofereceu foi muito mais importante que tudo o resto. Uma noite de sexo muito especial, a minha primeira vez. Eu estava nervosa e ele notou, pôs-me à vontade e penetrou-me com suavidade. É inexplicável o que senti, um enorme prazer aliado a uma dor mínima. Repetimos várias vezes, como se aquilo para mim já fosse um hábito e no fim da noite ele deu-me dinheiro. Eu ia a sair do seu carro, ele esticou a mão e deu-me uma nota de cem euros. Não tive nenhuma reacção, a não ser a de aceitar. Junto à nota vinha um bilhete que dizia para não o procurar mais, que tinha mulher e um filho e que esperava ter-me compensado por isso.
O dinheiro aliado ao sexo levou-me assim para uma espiral de perversão que ainda hoje me asfixia.

É assim que conto a minha história. É assim que conto como comecei a prostituir-me. A minha tia olha-me agora como se eu fosse um bicho nojento, quase que sinto os pensamentos dela a viajarem pelo mundo de sexo que eu percorro há mais de um ano. No outro lado da sala, a fumar um cigarro, a minha prima lança perguntas para o ar, como se este fosse o assunto mais banal que houvesse para se debater num reencontro familiar. Ela quer saber quantos homens já me foderam, se eram novos ou velhos, feios ou bonitos. Como se isso interessasse... o que realmente me interessa nas minhas noites devassas é sentir o dinheiro nos bolsos, sentir que valeu a pena, sentir que apesar de ser uma puta ainda consigo sustentar-me. Sei que o que esperavam era que eu chorasse enquanto revelo uma coisa destas, mas não o faço. Já deixei de o fazer há muito e já que estamos numa de contar a verdade...

Agora a minha tia conta-me a vida do meu pai neste período de tempo em que não nos vimos. Não quero ouvir mais, prefiro sair e apanhar algum ar fresco. O cemitério onde o meu pai foi sepultado é igual a todos os outros, a sua campa é banal, como tantas outras. Não sei porquê mas isso aborreceu-me, como se eu pudesse ter-lhe dado um sítio melhor para ele descansar em paz. Penso nisso e não consigo chorar mais. Se ele fosse vivo não permitiria que eu me pusesse a chorar, por isso vou fazer força para aguentar mais um pouco.

Visitei a nossa casa e encontrei montes de fotografias nossas, nas quais eu me recusei a tocar, como se o meu corpo as fosse contaminar, como se fosse estragar a pureza que emana delas. Adorava ficar mais algum tempo por aqui, pois parece que sinto o cheiro do meu pai em todos os objectos, mas preciso de trabalhar hoje à noite. Trabalhar... como se ser puta fosse o trabalho mais normal do mundo. Não, não é.




Ricardo
As notícias correm depressa. Nesta altura já toda a minha escola sabe que sou um anormal. Gosto de rapazes, sou um anormal. Pensei que tivesse sido o Nuno a contar mas ele jurou que não foi e não sei porquê vi-me forçado a acreditar nele. O meu pai diz que já marcou uma consulta na psicóloga e que acredita que eu vou ser curado. Que estupidez. Não preciso de nada disso, pois eu é que vou provar a mim próprio que não sou gay. Isto pode ter sido apenas mais uma experiência da vida, um desvio de atitude. E agora aqui estou eu sozinho, no meu quarto escuro, vítima dos meus próprios erros. Mais, sou vítima da discriminação de quem não aceita pessoas diferentes. Como explicar isso a quem sente repulsa? Isso de se gostar de pessoas do mesmo sexo...

Até eu sinto nojo de mim próprio, do meu corpo. E não sei como contornar isso.

O meu corpo espalmado contra a cama parece não querer mover-se. De vez em quando lembro-me de respirar, já tenho os olhos secos. Não os consigo fechar, fixando obsessivamente as sombras que a luz da rua projecta na parede do meu quarto, através da janela entreaberta. Estou sozinho e preferia ficar assim até ao fim dos meus dias, sem ninguém para me apontar o dedo. Um susto. A campainha toca. Os meus pais ainda estão no trabalho, quem pode ser? Alguém para me envergonhar?

Não quero saber. Toca outra vez e outra vez e outra vez. Não vale a pena ignorar. Levanto-me, sinto-me um pouco atordoado. Forço-me a caminhar até à porta, que abro muito devagar, como se dali fosse emergir um demónio qualquer pronto a degolar-me. Não me enganei muito.

“Daniel? Aqui?”




Daniel
“Olá Ricardo. Estás bom?”

Entro sem pedir licença.

“Vejo que precisas da minha ajuda. Primeiro, deixa-me dizer-te que só vim aqui porque sei que precisas muito de mim. Segundo, deixa-me dizer-te que quem telefonou para o teu pai fui eu. Terceiro, se toda a gente sabe agora da tua orientação sexual, a culpa é minha. Minha e tua, porque davas muitos nas vistas quando andavas com o Nuno no jardim à noite.”

O Ricardo avança para mim, como quem vai bater-me, mas a faca que saco do bolso é o suficiente para o fazer recuar. Aqui estamos nós, no hall de entrada da sua casa. Ele treme e eu continuo a falar enquanto lhe aponto firmemente a faca.

“És um anormal. Sabes disso, não? És algo que a sociedade nunca vai aceitar. Tenho pena, porque não vais poder mudar isso.”

Ele começa a chorar, enquanto eu o encosto à parede e o agarro pelo pescoço. Consigo ter uma força que me surpreende. Mas o que vou fazer com ele? O que é isto?

“Devias ter mais cuidado, porque as pessoas têm olhos que vêm muito bem, até no escuro. Até nas ideias mais obscuras. Sabes, quero vingar-me de ti, pelo que me fizeste passar em frente àquela turma merdosa que nós temos. Eu fui posto de parte e tu agora também.”

Isto caiu-me como um murro no estômago, sinto um calafrio. O Ricardo está a sofrer o mesmo que eu. Ele começa a chorar mais e também a falar. As suas palavras desarmam-me. “Daniel, tu e eu somos iguais, não percebes? Apenas vítimas da discriminação, só porque somos diferentes...”
Deixo cair a faca e ajoelho-me aos pés dele, sinto a minha cabeça vazia, o corpo leve como se fosse começar a flutuar. Ele baixa-se, ficamos os dois de joelhos e abraçamo-nos. Abraçamo-nos com tanta força que os nossos ossos parecem estalar. Há uma força que emana dos nossos corpos, que nos contrai um contra o outro.

“Desculpa, desculpa, desculpa!”. Repetimos um ao outro enquanto as nossas lágrimas nos molham, como se nos lavassem a alma. Este não sou eu. Ou melhor, este não é quem eu quero ser. Este é o Daniel que quero sempre ocultar. E sou tão frágil, nada frio como queria ser. E sou tão compreensivo neste preciso momento. Sinto a fragilidade do Ricardo e quero recriminar-me por tudo o que fiz. Mas se eu não o tivesse feito, não acabaríamos agora assim. Pois é, parece que até um psicopata tem um lado mais carente.



A questão deste capítulo não está directamente relacionada com o desenrolar da história. Ou seja, independentemente da resposta que vença a votação, o rumo da história não será alterado mas apenas avançará mais depressa ou mais devagar em relação a um dos personagens. Aproveito para dizer que por agora vou mesmo ficar-me pelos 10 capítulos. Depois disso logo se verá o que poderá acontecer.


Qual dos personagens deve ter mais destaque no próximo capítulo?
Pedro
Raquel
Ricardo
Daniel
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terça-feira, 22 de maio de 2007

CAPÍTULO VI

António, António… é hoje. A Raquel vai finalmente perceber. E todos eles se aproximam. Já percebeste a ligação do Ricardo ao Daniel e tens medo que os dois sofram com o choque de identidades que se torna inevitável. Por outro lado, o Pedro permanece um mistério para ti. Ou talvez não. Analisa bem os seus comportamentos. Afinal, apesar de morto, o psiquiatra aqui és tu…


Nota: devido a um empate na votação do “Pedro”, fui obrigado a escolher uma das opções. E a opção escolhida foi “O Pedro deve mentir.”


Pedro
Esta sensação de familiaridade causa-me arrepios, pois sinto como se isto já fizesse parte da minha vida. Perdoem-me a minha fraqueza. Perdoem-me por ter mentido. Sim, menti a quem me perguntou se desta vez queria mesmo morrer. Eu não queria, é óbvio que não queria mas não posso passar pela vergonha de admitir que queria apenas ter todas as atenções apontadas para mim. “Isto é a psiquiatria”, repito para mim próprio em pensamentos que me trespassam a cada hora que teima em fazer-se longa.

A minha mãe não consegue mais vir aqui e nem sequer telefona. As últimas palavras dela foram para me dizer que tinha sido ela própria a encontrar-me lá em casa, entre o álcool e os comprimidos que quase me mataram. Já sei que para ela eu morri, pois a única certeza que ela tem neste momento é que ao primeiro passo fora do hospital eu vou repetir isto, até morrer. Mas não vou. Não, não vou.

Sou um jovem suicida.

Os meus olhos tornam-se novamente pesados, sinto o meu corpo atordoado e deixo-me levar por esta dormência. À minha volta o mundo continua a girar. O meu inconsciente apercebe-se disso, pois os meus sonhos são levados para fora das paredes deste hospital.
Vejo o meu amor a chorar enquanto fala com as amigas sobre o que eu fiz. Vejo a minha mãe desesperada num quarto frio e vazio. Vejo-me acorrentado a algo que não me deixa soltar.

O que é isto? Um sonho ou o reflexo da realidade? Quem sou eu?



Raquel
O choque inicial acalma-se com a raiva que sinto agora. Aquele telefonema pôs a nu todos os dias da minha vida desde que deixei o meu pai. Foi como se uma terrível verdade se abatesse sobre mim e o mundo apontasse agora os meus erros cruéis e mesquinhos.

Mais de um ano longe de tudo e agora é que o meu passado se lembra de cair sobre mim.

Atendi aquela chamada. Quem me ligou foi a minha tia, única irmã do meu pai. Ligou-me do telemóvel dele, o que me fez crer poder ser ele quem estava a ligar. Mas isso era impossível. Agora eu sei que era impossível. O meu pai, António, prestigiado psiquiatra, morreu num acidente de automóvel. “O teu pai morreu Raquel…”, disse a minha tia a soluçar de tanto chorar, “tentamos contactar-te mas tornou-se impossível, não deixaste nenhuma pista, nada que nos conduzisse a ti”.

Se realmente quisessem saber de mim tinham contactado a policia quando eu desapareci. Afinal podia tratar-se de um rapto, mas quase que aposto que toda a gente fez força para que o meu pai apenas deixasse a situação avançar sem fazer nada para me rever. E assim fez ele. Eu arranjei a minha vida, tornei-me uma prostituta, como as pessoas simpáticas gostam de nos chamar. A família da parte do meu pai nunca gostou de mim, sempre achei que a minha força interior chocava um bocado com a futilidade deles. E agora encontram-me, através do Tiago. Nunca pensei. Nunca sequer imaginei que pudesse ser assim.

O Tiago já se foi embora, já deixou bem claro que não quer voltar a falar para mim. Eu percebo-o, afinal eu sou uma puta e isso não é uma coisa boa. Enquanto caminho por estas ruas cheias de gente, as palavras dele ecoam dentro de mim, fazem-me pasmar de surpresa, de cada vez que as recordo. “A tua tia é a mãe de uma grande amiga minha, tua prima portanto…”, disse ele sem sequer me olhar nos olhos, “foi através do hi5 que ela viu uma fotografia do nosso jantar de curso, onde tu também estavas. Ela reconheceu-te e daí até eu me oferecer para te ajudar no trabalho foi apenas um pequeno passo. Assim consegui o teu contacto, mas nunca esperei vir a descobrir que… que és uma…”

É… a Internet é uma coisa fantástica, não é?

E depois foi embora, o Tiago. O meu pai também foi e eu nem sequer o acompanhei nisso. Já não tenho mãe. Já não tenho pai. Quem sou eu? Quem é esta que se reflecte nas montras espelhadas das lojas por onde passo?

Ainda nem chorei, mas não aguento mais. O meu coração parece explodir, sinto algo preso na minha garganta. Sufoco. Perdi o meu pai. Estou sozinha no mundo, sem qualquer resquício de esperança. Encosto-me a uma parede suja e grito, grito de dor, de vazio, de fúria. As minhas mãos cravam as minhas calças, quero rasgar-me, abrir o meu corpo. Só assim posso sentir que estou viva. As pessoas passam na rua e, frias, olham-me como se eu fosse uma louca. Sentissem o que estou a sentir agora e já não olhariam assim. Mas estou melhor assim, sozinha. A minha mãe também decidiu morrer sozinha e de certa forma o meu pai também. Agora sou eu quem morre para o mundo.


O tempo voa, leva-me com ele. Prometi à minha tia que ainda vou esta semana ver o sítio onde o meu pai foi sepultado. Não quero ir, porque isso já de nada adianta. Queria apenas que ele respondesse às minhas perguntas, que me explicasse porque nos destruímos mutuamente se o amor que havia entre nós suplantava toda e qualquer ferida que pudesse abrir-se em nós. Quero tanto saber os motivos que o levaram a afundar-se no álcool, porque sinto-me muito culpada por isso. Haverá razões para isso?

É estranho, mas sinto que o meu pai me observa.




Ricardo
O chat acabou mesmo por dar os seus frutos. Uns foram frutos muito doces, outros foram frutos muito podres. Neste momento o meu pai está sentado à minha frente e faz perguntas sobre a minha sexualidade. É isso, o meu pai descobriu que sou gay. E eu sou? Sou. Pronto, por agora sou.

Aquele rapaz mais velho que conheci no chat pôs-me louco com aquela língua no meu pénis. Não deixo de pensar nisso enquanto o meu pai continua a discursar.

E que vou dizer? Digo a verdade. “Sim pai, já tive experiências sexuais com rapazes”. Ele pergunta se não é apenas uma fase, eu digo logo que não é. Mas ele não quer acreditar.

O outro rapaz que também conheci na net deu-me muito prazer no carro dele, quando fomos para o meio do mato ontem. Foi uma noite louca, mas acabou por me magoar enquanto fazíamos anal. Já nem me lembro do nome dele. O meu pai continua a fazer perguntas enquanto agita no ar as folhas que imprimiu do meu computador. Todos os meus registos de conversas na net estão ali na mão dele. Naqueles registos estão todas as minhas confidências sexuais, as “não sexuais”, aquelas sobre a minha família, as outras sobre os meus amigos. Isto é pior que tirarem-me a roupa em praça pública. Estou nu perante o mundo. O meu pai diz agora que a minha mãe ainda não sabe de nada e que foi através de um telefonema anónimo que lhe contaram sobre a minha orientação sexual. Foi o Nuno, de certeza, para se vingar dos pontapés que lhe dei na discoteca. Eu por outro lado, para o esquecer, arranjei outras fontes de prazer.

Aquele mais velho da net chegou a avisar-me para os perigos deste mundo, enquanto me fazia um broche na sua casa. É casado e tem dois filhos, um quase da minha idade. É um gay frustrado. O meu pai não desiste, nem com a minha confissão. “Sim, isso é tudo verdade.”

Mas o que sou eu afinal? Quem sou eu? Em menos de uma semana já tive sexo com três conhecidos da net. O meu pai descobre tudo sobre mim e eu não me importo. Pior, aquele Daniel, o anormal lá da minha escola, avisou-me que já correm rumores de mim na minha turma, sobre a minha orientação sexual. Mas a única rapariga que eu namorei, há mais de dois anos, parece que não quer acreditar nisso. E claro, os meus amigos defendem-me com unhas e dentes. Mas aquele Daniel percebeu logo que eu estava a mentir quando disse que não sou gay. Mas o que é isto afinal? Uma conspiração contra mim?

Se realmente é algo contra mim, então não está a funcionar, pois não me sinto minimamente mal com isto.

O meu pai desistiu, saiu do meu quarto a chorar e cortou-me o cabo da Internet. Não me interessa, tenho alguns contactos no telemóvel. Sou gay e depois? A minha vida tem tido mais prazer nas últimas duas semanas do que alguma vez eu pudesse ter imaginado.

O meu treino de futebol vai ocupar-me algumas horas agora, assim posso esquecer o assunto que parece querer corromper a minha vida. Entro no balneário, como sempre os meus colegas de equipa chegaram primeiro. Há algo estranho, como se eu tivesse algo na cara, eles olham para mim com repulsa. Não me falam e não percebo porquê, até nem joguei mal no último jogo. Tento não ligar a isso e preparo-me para vestir o meu equipamento. O meu melhor amigo e capitão de equipa avança para mim enquanto diz algo que me põe a tremer: “Ricardo, sai. Não te dispas. Não queremos um paneleiro aqui…”

Nesse mesmo instante o meu mundo desabou, senti um enorme peso nas costas. Afinal parece que ser gay não é assim tão bom como eu pensava.




Daniel
“Pois é Ricardo, eu sou o anormal de serviço não é? Ficas a saber que no meu bolso está aquilo com que era suposto ferir-te, mas não o vou fazer. E sabes porquê? Porque tu vais acabar por te ferir a ti próprio e assim eu não tenho problemas legais por te fazer um corte simpático com uma faca lá de casa. Não falas, não é? Podes fingir que não ouves, mas devias dar mais atenção aos boatos que correm sobre ti. Dizem que és gay. Serás? Porque é a tua boca diz “não” se os teus olhos dizem “sim”? És gay Ricardo. Não vejo mal nenhum nisso, pelo menos assim não corres o risco de procriar e o mundo fica um sítio bem melhor sem pessoas do teu sangue a vaguear por aqui. Tens noção de que eu te odeio, não tens? Não é bem odiar, é mais ter nojo, como se tem das baratas que povoam as instalações podres dos edifícios. A tua vida vai tornar-se num desses edifícios, sabes?”

Foi quase um monólogo que mantive com aquele palhaço. E no fim ele foi embora como se eu tivesse sido invisível, como se não tivesse nada. O que me alegra é que eu sei que tudo o que eu disse são verdades quase absolutas e que bem lá no fundo ele sente que vai acabar por me pedir ajuda. Começo a gostar do Ricardo. A gostar das fragilidades dele. Sim, porque eu não sou gay. Odeio esse tipo de pessoas que pensam que a diferença deve marcar o mundo. Mas e eu? Eu também sou diferente? Quem sou eu?


Este espelho que me reflecte agora está a querer mostrar-me quem sou. Mas este espelho não mostra o meu interior e ainda por cima reflecte algo que não sou eu. Não interessa, sorrio para aquele da imagem reflectida e vou embora. Mas ainda nem sei para onde vou.

Talvez deva visitar o meu falecido psiquiatra no cemitério. Ele iria adorar ter ali a presença do seu paciente mais problemático. Ou talvez deva agora aproveitar para voltar a visitar o Ricardo, afinal o pai dele já sabe das orientações sexuais do seu querido filho. Bastou-me fazer um telefonema anónimo para casa dele e a história rolou por si. Por outro lado, o Dr. António de certeza que me observa lá de cima, sinto isso a cada passo que dou. Mas... o Ricardo necessita da minha preciosa ajuda agora, ou não? E eu preciso de o humilhar…


O Daniel deve...
visitar o António
visitar o Ricardo
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segunda-feira, 14 de maio de 2007

CAPÍTULO V

António, desta vez as coisas vão precipitar-se... e vais perceber o motivo que me levou a mostrar-te o Ricardo.


Pedro
É aquela sensação de querer repetir. Arrasto-me pelos corredores deste hipermercado onde as pessoas passeiam de uma forma quase irracional. Novamente aquela sensação de querer repetir. As garrafas das prateleiras sorriem à minha passagem, dançam para mim, seduzem-me. Quase que sinto o cheiro daquele whisky, a atracção da vodka. É isso, desta vez vai ser diferente. Sim, desta vez vou recorrer ao álcool para consolar a minha dor.

A minha vida não está nada fácil. Sinto a falta do meu pai, agora mais que nunca. Vejo-me sem força para fazer a minha mãe voltar a confiar em mim, sem que tenha medo do que eu possa fazer na sua ausência. O meu amor não quer saber de mim, tem optado por me ignorar nos últimos dias e recusa amar-me como antes. Como se isso não bastasse, ainda me vi obrigado a desistir dos concursos de dança pelos quais lutei durante tanto tempo. No meio disto tudo, a minha tentativa de suicídio foi um acto sem qualquer significado para mim. Talvez por isso eu o queira repetir.

Mas se na primeira vez eu sentia mesmo necessidade de morrer, agora sinto apenas necessidade de resolver os meus problemas. As pessoas à minha volta parecem fugir ao meu controlo, por isso talvez com uma pequena chamada de atenção eu consiga obrigá-las a olhar para mim, para o que eu quero...

A minha casa parece sempre tão fria quando estou sozinho e nem mesmo a música que ponho a tocar chega para aquecer o meu coração. A garrafa de vodka que comprei já está aberta, para uma festa privada. A minha pequena festa. Desta vez escolhi os comprimidos, não me limitei a agarrar em caixas ao acaso. Estes anti-depressivos que o psiquiatra me receitou vão mesmo acabar por me fazer algum efeito, eu sabia que eles tinham que ter um propósito. Misturo a vodka com sumo de limão, dizem que bate mais depressa assim. Em cada copo misturo três comprimidos. Depois de cinco ou seis copos já nem consigo agarrar bem a garrafa. A minha visão está turva, os meus movimentos estão lentos e até a minha audição parece estar condicionada. Ouço vozes e passos. Até parece que alguém me está a agarrar. Sinto-me cair no chão enquanto vomito. Tenho outra vez a sensação de que alguém me está a agarrar. Agora é uma sensação de rodopio, como se estivesse a cair num abismo sem fim, mas como se conseguisse voar. Paro de vomitar e então faço força para chegar ao copo cheio de vodka, mas algo me impede. Alguém agarrou a minha mão. Tento ver quem é, mas não consigo distinguir nada da encruzilhada de cores e movimentos que me turvam a vista.

Este cheiro é me familiar. Estes sons também. Pânico. Estou novamente no hospital. Choro. Estou na psiquiatria outra vez. Grito. Como é possível estar aqui? Não tomei nem metade dos comprimidos da primeira vez.
Uma enfermeira corre para mim. Desvio o olhar, para não a enfrentar. Ao meu lado está o meu amor. Está aqui, respira comigo, olha para mim mas os seus olhos não mostram tristeza. O que é isto? Estou a sonhar? Ela fala para mim, quase que sinto o ódio que sente por mim neste momento. Mas eu amo-a. Que se passa?

“Pedro, misturaste comprimidos com álcool. Devias saber que isso é uma dose mortal. Mas eu sei muito bem que só querias despertar a minha atenção por ti. Parabéns, conseguiste, mas da pior maneira. Podes apostar que agora acabou tudo de vez.”, estas palavras não podem estar a sair da boca dela. Não. Não pode estar a acontecer. Ela vira-me as costas, sem me dar oportunidade de falar. Vejo-a seguir determinada pelo corredor enquanto a enfermeira se aproxima de mim, quase que goza com a minha situação.

“Pois é, menino Pedro... a misturar álcool com comprimidos. Desta vez querias mesmo morrer, não?”


O Pedro deve...
dizer a verdade: "Não, eu só queria dar nas vistas"
mentir: "Sim, por acaso queria mesmo morrer."
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Raquel
Isto tinha que acontecer, o primeiro contacto com o Tiago depois de ele ter descoberto o que faço à noite. Eu ia atrasada para a primeira aula da manhã e pelos vistos ele também, o que fez com que nos cruzássemos à pressa no corredor que dá acesso à sala de aula. Desviei os olhos e apressei o passo em direcção à sala, nem foi de propósito, foi o instinto. Senti que ele parou e também desviou os olhos antes de gritar o meu nome. Paralisei, agora não podia ignorá-lo. Continuei de costas voltadas para ele, enquanto o sentia aproximar-se.

A primeira preocupação dele foi dizer-me que não tinha contado a ninguém. Depois pediu desculpa pela reacção do momento, enquanto dizia e repetia que não podia aceitar nunca aquilo que eu estava a fazer. Antes que eu começasse a chorar, ele pegou-me na mão e arrastou-me para a rua, faltamos à aula, e obrigou-me a contar por que fazia eu aquilo à noite, por que vendia o meu corpo.

A minha terapia começou. Sentamo-nos a um canto mais escondido, para que ninguém nos ouvisse a falar, mas ainda nem tinha contado metade da minha história quando estranhamente o meu telemóvel nos interrompeu. Eu conhecia bem aquele número, só não percebia como é que ele tinha chegado ao meu telemóvel. Enquanto ele piscava no ecrã, eu só me lembrava de como tinha apagado todos os rastos que pudessem conduzir a mim. Quando desapareci da minha outra vida optei por mudar de número de telemóvel, para que me tornasse incontactável, mas agora o número do meu pai estava a ligar-me. Como? Como tinha ele chegado a mim?

O Tiago notou a minha hesitação e perguntou se eu não ia atender. Eu respondi que não queria fazê-lo e preparei-me para rejeitar a chamada, mas ele não deixou. Pegou novamente na minha mão e segurou-a firmemente. O que me disse a seguir fez-me tremer da cabeça aos pés.

“Raquel, é melhor atenderes... asseguro-te que não é o teu pai quem está a ligar. É a tua tia e as notícias que tem para te dar não são as melhores, é melhor que saibas o mais rápido possível.”

Foi como se me tivessem dado um murro no estômago. Como é que ele sabia quem me estava a ligar? O que fazia ele ali afinal?



A Raquel deve...
atender a chamada
não atender, pedir primeiro explicações ao Tiago
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Ricardo
“You’re so sexy”. A música estridente inunda os corpos, faz-se sentir enquanto eu e o Nuno dançamos agarrados. “The beauty of that elusive creature called… ahh… man”. Sim, a beleza da criatura misteriosa e ilusória que é o homem. Sinto as batidas fortes do som. O Nuno beija-me. À nossa volta as pessoas dançam indiferentes. Noutro sítio qualquer esta cena não se passaria assim, mas o facto de estar numa discoteca gay altera completamente a minha realidade, ou pelo menos aquela a que estou habituado. Os nosso beijos continuam, enquanto me sinto arder de paixão. Já não tenho dúvidas, gosto do Nuno, mas gosto dele com uma força tremenda. No fim da música arrasto-o para fora da pista de dança e olho-o bem nos olhos, à espera que ele me faça a pergunta. Ele hesita e fica calado, como se não percebesse o que estamos aqui a fazer. Depois de eu próprio hesitar um bocado, vou buscar toda a minha força e pergunto-lhe se ele quer namorar comigo.

Não percebo bem a reacção dele, pois age como se eu tivesse feito a pergunta mais estúpida do mundo. Como se eu lhe tivesse pedido uma coisa impossível. Ele ri, como que a gozar comigo. Já percebi, ele não quer nada disso. Ri-se de mim, pergunta se eu estou mesmo a falar a sério, se penso mesmo que isto pode dar em algo mais que sexo. O chão parece fugir debaixo dos meus pés, enquanto as lágrimas me enchem os olhos e começam a rolar pelo meu rosto. Sinto-me mal, um enorme desgosto parece ficar preso na minha garganta enquanto me afasto dele e procuro um sítio para estar sozinho, mas as luzes não param, a música não acaba. A multidão dançante continua eufórica, festeja, como se este fosse um momento para festejar. Parece que o meu mundo acabou, de tão grande que foi a desilusão do momento.

Agora mais calmo, deixo-me ficar aqui a um canto. O Nuno continua a dançar na pista, parece que já arranjou companhia. De onde estou não consigo ver muito bem, mas parece-me que eles são mais que simples amigos ou conhecidos. Percebo o que se passou, o Nuno usou-me, aproveitou-se de mim, mentiu-me, iludiu-me. Sinto raiva por não ter percebido isso antes e o que mais me magoa é que ele ainda gozou comigo quando eu apenas lhe quis mostrar o meu amor.

Os meus anos no futebol têm que servir para alguma coisa, afinal toda a gente diz que eu tenho um bom pé esquerdo. Há que fazer uso dele agora. É uma fúria cega que me invade enquanto me aproximo do Nuno e o puxo pelo cabelo para fora da pista. À minha volta vejo rostos pasmados que se afastam enquanto eu o arrasto. O Dj põe Madonna e ouvem-se uns gritos histéricos de meia dúzia de bichas.

Os pontapés que lhe dei a seguir foram tudo menos suaves e exprimiram bem o ódio que lhe senti no momento. Consegui sair da discoteca sem que algum segurança desse pela situação e deixei-o a contorcer-se no chão com dores no estômago. Caminho agora sozinho pela noite. Estou triste, abatido e surpreendentemente não me sinto muito bem por ter feito aquilo ao Nuno. Construí o meu conto de fadas com ele, mas em apenas uma noite o nosso pequeno castelo desmoronou-se e deu lugar a um monte de ruínas. Agora o mais certo é que não nos voltemos a falar, mas eu gosto dele, preciso dele.

O meu quarto parece mais vazio que o habitual. Estou frio, não por fora, mas por dentro. Frio de desilusão, não consigo dormir e também não me esforço para isso. Talvez pudesse ir agora ao chat, ao mesmo onde conheci o Nuno. Talvez pudesse assim diminuir a decepção que me corrói. Talvez deva dormir e esquecer que o mundo lá fora existe, seja ele real ou virtual.


O Ricardo deve ir ao chat?
sim
não
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Daniel
O cenário perfeito. Eu, o meu pai e uma jornalista. Eu acabei de ser despachado da psiquiatria, vou para casa. O meu pai nem sabe o que faz aqui, nota-se que está nervoso. A jornalista procura entender o porquê do meu pai aqui, enquanto observa de relance esta sala de espera do hospital.

Apresento o meu pai à jornalista, que se mostra um pouco nervosa. Afinal, quando combinei com ela a entrevista, falei apenas de mim, nunca referi o meu pai. Mas agora aqui tem ela o primeiro-ministro à sua inteira disposição, ou talvez não. O meu pai começa ficar nervoso, agora que se apercebeu que esta mulher pode manchar a sua imagem na imprensa. Noto que ele se mostra agora mais atencioso comigo, mas logo acabo com esses sentimentos pretensiosos e falsos.

“Pai, vou embora para casa, mas não preciso que me leves. Se não me vieste visitar um único dia enquanto aqui estive, também não é agora que preciso de ti. Quanto a si, senhora jornalista, volte lá para o seu poleiro porque daqui não leva nenhuma entrevista. Se queria uma noticia já a tem e penso que é o suficiente, não tire fotos por favor.”

E com este discurso enfatizado virei costas e deixei os dois completamente sem saberem o que dizer. Foi a situação mais divertida da minha vida, porque tive mesmo aquela sensação de poder e criei uma tensão constrangedora para duas pessoas que pensavam que iam ganhar o dia à minha custa. Agora nem o primeiro-ministro vai dar ar de pai responsável nos jornais, nem aquela jornalista mesquinha vai ter uma entrevista exclusiva com o filho dele. Mas uma coisa é certa, a imagem dele vai ser prejudicada e eu vou ter muito orgulho nisso.

A minha mãe não gostou da forma como eu apareci em casa sozinho, afinal ela pensava que quem me levava era o meu pai. Quando lhe contei a situação que criei no hospital, não conseguiu evitar um sorriso malicioso mas logo fez uma cara séria para reprovar a minha ideia. No fundo ela queria isto muito mais que eu, mas há que manter as aparências.

Fingi que tomei os medicamentos, para deixar a minha mãe despreocupada e parto agora para um breve passeio à volta da minha escola. Ainda não me esqueci que fui expulso por causa daquele ordinário da minha turma e que é preciso fazê-lo pagar por isso. Relembro agora a maneira como ele me chamou anormal em frente a toda a gente. Aquela raiva faz-se sentir outra vez em mim. O Sol acorda os meus sentidos, embacia-me a visão e dificulta os meus movimentos. O meu médico bem me avisou que a medicação a que estive sujeito foi muito forte, que devia ter cuidado nos primeiros dias, mas a minha vontade de apanhar aquele miserável é mais forte que tudo isto. Por alguns momentos encosto-me ao gradeamento da escola e espero que me passe esta embriaguez das drogas do hospital. Já nem sei o que me preparo para fazer, apenas sei que no meu bolso permanece aquele objecto cortante com que planeio feri-lo. Sim, apenas feri-lo. É o que quero, sim é isso. É uma faca normal, das que todas as donas de casa usam nas suas cozinhas. Levo a mão ao bolso e vem de novo aquela sensação de poder mas vem também o medo. Excitação, lá vem o ordinário miserável a sair da escola, dirige-se para aqui. O ordinário miserável tem um nome. Chama-se Ricardo, é o melhor jogador de futebol da turma e ultimamente tem sido alvo de boatos sobre a sua orientação sexual. Vamos ver quem é o anormal agora...


O Daniel deve...
Desistir de ferir o Ricardo, ir embora
Ferir o Ricardo, ele merece
Apenas falar com o Ricardo, sem violência
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